sábado, 11 de março de 2017

2. Como funciona o capital especulativo?

Do que se trata o especular. 

Imagine que você compra uma garrafa de água numa banquinha da praia por, digamos, R$ 2,00. Então resolve vendê-la para algum banhista que, debaixo do sol e longe da loja, não quer se deslocar para adquirir o líquido. No entanto, não venderá essa garrafa pelo preço que pagou, irá comercializá-la com uma margem de lucro, com o valor final de R$ 4,00. Até aí, nada demais; você está cobrando R$ 2,00 a mais pelo trabalho que teve de trazer a garrafa e não bebê-la, e ele, mesmo sabendo do valor real da garrafa, não se importa de te pagar mais para não ter que andar até a loja. É claro, esta pode não ser uma situação casual, você poderia ter feito isto premeditadamente: sendo um vendedor de bebidas ambulante, especulou que sob o sol forte, e longe da barraca, alguém pagaria mais pela água apenas para não ter o trabalho de ir buscá-la. Ou seja, você especulou que o preço seria maior e realmente conseguiu um valor maior por isto, obtendo assim lucro. Esta é a base do especular. Especular faz parte do capitalismo como um todo; você produz ou compra algo por um preço menor do que aquele praticado na venda final. De certa forma, isto não é problema, em principio. Mesmo em comunidades onde não existe o capital, existe a troca de bens e serviços: dez ovos de galinha por uma flecha, um punhado de batatas por dois punhados de arroz, um pedaço de carne de veado para quem tiver o trabalho de prepará-la. Apenas comunidades muito coletivas são diferentes; como as indígenas, onde os trabalhos são organizados do todo para o todo. Mas nas demais comunidades humanas especular faz parte das relações. Aliás, até nas ações indígenas mais rudimentares havia a especulação, ou entre objetos sem valor comunitário (uma pedra diferente que achei por uma pena de um animal raro), ou entre comunidades indígenas que trocavam itens (uma oferenda sagrada por objetos sagrados etc). Então podemos supor, sem claro fechar esse pensamento, que especular faz parte das relações humanas básicas. Especular é a forma de trocar bens ou força de trabalho de forma simbólica; afinal, quanto vale mesmo uma hora do meu esforço? Quanto vale eu te trazer a garrafa de água? Quanto vale meu punhado de pão ou seu punhado de ovos? São questões que, como humanos, temos de responder. Não podemos mais deitar na sombra e esperar a fome bater para caçar nosso alimento. É graças a troca movida pela especulação que as civilizações adquiriam escrita, cálculo, desenvolveram cidades, história e, enfim, onde parte da raça humana se tornou humana como a conhecemos. Mas igual a tudo, especular teve e tem seu lado negativo: quando ela deixa de ser apenas uma força simbólica de avaliar bens e força de trabalho se tornando uma forma simbólica de avaliar o próprio símbolo. Ou seja, quando ao invés de se cobrar um valor maior de algo por conta de condições específicas (como a água mais cara porque alguém se deu o trabalho de buscá-la) nos passamos a cobrar pela própria especulação.


Especulando a especulação. 
Voltando ao nosso exemplo anterior: o vendedor ambulante de água na praia. Digamos que outro homem, o “empreendedor”, perceba o quão lucrativo é sair vendendo as garrafas na praia. Porém, ele não quer se dar ao trabalho de vender essa água; na verdade, ele não quer se dar a trabalho nenhum, só quer ganhar um dinheirinho fácil. Desta maneira, tem uma ideia brilhante: percebe que o pobre vendedor ambulante carrega uma quantidade pequena de garrafas e ganha o suficiente apenas para alimentar sua família. Se o ambulante pudesse comprar e levar mais garrafas, ganharia muito mais; pois a praia tem gente demasiada querendo comprar a água e poucas pessoas para vendê-la. Desta maneira, o empresário decide conversar com o vendedor ambulante e propõe um acordo, ao meu ver, escuso: usando seu próprio capital adquire um carro com rodinhas e o enche de garrafas de água, dez vezes mais do que o ambulante antes podia carregar. Neste acordo, o ambulante não precisa mais pagar pelas garrafas, apenas precisa vendê-las. Elas continuam valendo R$ 2,00 e vendidas por R$ 4,00. No entanto, o ambulante terá que pagar não só o investimento de R$ 2,00 a cada garrafa que vende ao empresário, terá que pagar R$ 3,00 e ficará com apenas R$ 1,00. Para o ambulante, parece um bom negócio: mesmo ele tendo que vender o dobro de garrafas só para atingir a meta do lucro anterior, ele acredita que agora possui a chance de vender mais garrafas e, assim, tirar um lucro maior. E na verdade tem, se andar mais que o dobro do tempo que andava e usar mais força do que usava empurrando o carinho, obviamente irá lucrar mais. Obviamente, há um gasto energético e de tempo superior aode ser um simples ambulante; porém ele está convicto que está lucrando com sua forma de trabalho. Talvez esteja. Porém, quem ganha mais nessa história? obviamente que o o empresário, pois ele ganha sem trabalhar, ele ganha apenas especulando o especulação. Afinal, sua única preocupação é: Irei investir nesta praia ou em outra? Este ambulante é mais promissor que outro; ele trabalha mais ou trabalha menos? Invisto em água na praia ou cocada no centro da cidade? São estas decisões que irão colaborar para seu lucro ou seu prejuízo. Mas tem alguns poréns - os produtos que comprou sempre serão seus (na pior das hipóteses vende tudo ao preço de custo e recupera o capital para investir em outra coisa), ele também investe em mais de um negócio (se o ambulante de água não der lucro, o da cocada pode dar o suficiente) e como não gastou seu tempo ou sua força de trabalho, ele ainda pode usufruir dessas para se recuperar de imprevistos. É  claro que isto se trata de um exemplo simples, mas é fácil de perceber como funciona as bases do nosso mercado financeiro: gente que não trabalha ganhando dinheiro pelo trabalho dos outros. E a coisa fica ainda pior.

O trabalho real vale menos e o especulativo vale mais.
Se aprofundando no exemplo do vendedor ambulante.  Agora ele trabalha cinco vezes mais horas que antes e também tem um esforço de empurrar a barraca que o cansa de três a quatro vezes mais (mesmo que cubra a mesma distância anterior com um esforço menor, por conta das rodinhas; afinal, ele tem que andar mais e empurrar um peso maior). Mas está satisfeito, não só sustenta sua família como tem dinheiro para comprar bugigangas. A princípio, a maioria dos vendedores, que antes ganhavam seu sustento na praia como ele, sumiram; o ambulante empresariado tomou o lugar deles. Porém, por alguma razão, alguns desses vendedores sumidos estão voltando, agora recebendo dinheiro de outros empresários. Todos tem sua barraquinha com rodinhas e muita água. A quantidade de pessoas que existe na praia é a mesma, mas a quantidade de água vendida é bem maior. A partir de agora não adianta o ambulante andar mais, não tem mais praia para ir; ele só tem uma opção para continuar vendendo a mesma quantidade que antes, baixar o preço. No entanto, o empresário, que não trabalha, não quer perder o lucro que já recebia antes por cada garrafa, assim ameaça o vendedor de retirar sua barraca e suas garrafas de água que, na real, são do empresário. Pois este sabe que pode passar a barraca para qualquer um dos antigos ambulantes desempregados por um valor menor, pois eles precisam se sustentar. E mesmo que não faça isso, o empresário tem a cocada e muitos outros negócios rentáveis que não o deixarão na mão, este é só mais um dentre tantos. Já o vendedor ambulante só tem este, se perdê-lo, seria o fim; assim decide baixar o preço, mas manter o lucro do empresário investidor. O mesmo ocorre com os demais, os preços vão baixando e seu lucro diminuindo ao ponto do ambulante trabalhar muito mais do que antes, porém, com os mesmos lucros de quando não tinha um investidor. 

Ganha quem mente melhor.
Porém o ambulante não está satisfeito, as coisas estão piorando. Está começando a ganhar menos ainda do que quando trabalhava sozinho. Não pode mais tentar viver como antes, pois está concorrendo com outras barraquinhas ambulantes, também não pode largar seu emprego ou vai passar fome. No meio da crise, decide ter uma ideia, acredita que foi enganado e chegou a hora de enganar. É óbvio que ele não pode passar a perna no investidor, seria perigoso demais ter qualquer ideia mirabolante que acabasse irritando seu “chefe”. Decide fazer isto com os próprios clientes. Mas como? Que tal não comprar mais água na loja, poderia pegar de alguma fonte qualquer no meio da mata próxima. E se alguém descobrir, não seria preso? Bom, é possível reverter essa situação explicando que a água vem de uma fonte da mata. Porém o que faria as pessoas beberem da fonte da mata, ela deve ser mais pura, ela é feita por deus, ela é mais saborosa porque vem direto das riochas vulcanicas. Esta aí, o homem inventa a primeira marca de água da praia: Benção da Natureza - a água mais saudável e gostosa porque vem direto da fonte. O vendedor cria uma embalagem especial, de barro. Decide dizer que o barro era utilizado nas civilizações antigas e por isso está na Bíblia que eles viviam quatrocentos anos. Assim ele vai reunindo uma gama de informações supostamente verdadeiras e descontextualizadas para criar essa sua marca. A Água da Benção custa mais caro por conta dessas propriedades abstratas que ela tem. Talvez possa parecer engraçado, mas é o mesmo que se faz hoje com qualquer produto: não é o melhor que custa mais caro, mas aquele que gasta mais em publicidade. Só para se ter uma ideia, a industria farmaceutica gasta mais em publicidade por ano do que em pesquisa. Não é o melhor remédio que custa mais caro, mas o que foi mais publicizado. E a única função da publicidade é a mesma que nosso pobre vendedor ambulante imaginou de forma rudimentar - mostrar qualquer coisa abstrata que o produto tem de diferente para fazê-lo custar mais caro e/ou vender mais. (Veja o exemplo da industria farmacêutica clicando aqui).


Os 1% mais vagabundos. 
Através do exemplo anterior, você pôde entender, de forma rudimentar, como funciona a especulação financeira. É óbvio que a coisa é um pouco mais complexa; principalmente devido as proporções que o sistema toma numa escala global. Da mesma forma, a publicidade e propaganda modernas não surgem de uma simples mentira, elas são fruto de um sistema mais complexo cujo início real poderia ser atribuído a Joseph Goebbels e os seus princípios da propaganda nazista. É possível até imaginar a publicidade e propaganda modernas como enganosas lá no inicio, mas hoje este tipo de “enganação” é mais sútil. As empresas de marketing e publicidade trabalham esperando prever sua reação a determinado atributo que o produto de fato tem, mas que em suma é supérfluo. Seja como for, não iremos nos ater à essas questões da publicidade. O que é preciso entende é como funciona o mercado especulativo e suas repercussões negativas no mundo real. A primeira coisa é que o sistema ainda mantém a característica do nosso exemplo do vendedor ambulante, mas numa escala nacional ou mundial. Pessoas com muito dinheiro, os investidores, colocam seu capital em empresas e empresários que julgam potenciais de lucro. No exemplo anterior, tínhamos o próprio empresário investindo em seu negócio. Mas a partir do momento em que ele começa a investir em diversos vendedores ambulantes de água e em muitas praias, ele cria uma rede com o nome de uma marca. Aqui ele próprio precisa de alguém que invista em sua rede. E é nesta que os investidores capitalistas poem seu dinheiro. A marca pode ser local, nacional ou internacional. Se você leu o primeiro item deste tópico (as grandes corporações) já entendeu como funcionam esses conglomerados e sua influencia no mundo. Acontece que o investidor só irá colocar seu capital nas marcas que tem certa certeza de lucro, as que já são grandes o suficiente, obviamente recebem maiores somas, pois o risco é menor. Isto faz estas empresas maiores crescerem ainda mais e, obviamente, estenderem seus negócios e poder. Mas se lembrarmos do vendedor ambulante, ele tem obrigação em obter um lucro esperado para o investidor. Como está concorrendo com outros de mesmo potencial, precisa fazer o que for necessário a fim de manter os lucros altos para não sair perdendo e não perder o investidor. Lá, ele resolve enganar os clientes, aqui as empresas não só ludibriam os clientes como criam um sistema terrível chamado “externalidades”. Veremos do que se trata as externalidades mais a seguir. A questão que deve ficar clara aqui é que temos uma bola de neve onde, por um lado empresas precisam influenciar clientes obtendo lucros maiores a fim de agradar investidores e não saírem perdendo, e do outro um monte de pessoas que não trabalham de fato estão enriquecendo as custas dos verdadeiros produtores que ganham cada vez menos. Para se ter uma ideia, uma calça da Nike custa em média $ 0,14 para ser produzida. Geralmente quem costura essas calças, mal tem para cobrir suas próprias necessidades. Outro exemplo são os produtores de Cacau da Costa do Marfim (clique e veja o vídeo aqui).  É uma bola de neve: investidores (insisto, aqueles que NÃO trabalham) pressionam empresários por lucro, empresários pressionam a rede e a rede pressiona os trabalhadores. Isto acontece por meio do mercado financeiro, com a venda de ações das empresas. No final, os investidores, em geral 1% da população mundial, detém a mesma riqueza dos outros 99% sem nunca terem trabalhado. 

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